Há exatos cinco anos, o Brasil inaugurava, de modo cinematográfico, um novo sistema de negociação de energia elétrica. Na ocasião, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, uma espécie de bolsa privada de negócios designada para realizar as transações do setor, montou uma operação de segurança máxima para promover o primeiro leilão de energia do país. Os participantes da disputa - os principais executivos das empresas de geração -- foram isolados em suítes de um hotel da capital paulista. Antes de ingressar, todos tiveram de passar por detectores de metal para impedir a entrada de celulares, canetas, alianças ou qualquer objeto que pudesse ocultar transmissores ou receptores de sons, imagens ou dados. Dentro dos quartos, submetidos a uma varredura minuciosa, apenas mesas, cadeiras, computadores previamente vistoriados e um telefone que só se conectava com a central de apoio da CCEE. Uma vez na suíte, ninguém entrava ou saía antes do término do leilão. O objetivo de tantas restrições era evitar o vazamento de informação. O maior receio do governo - que havia recém-aprovado em lei o novo modelo de negociação - era que os concorrentes conseguissem combinar preços, o que colocaria por terra todo o aparato pró-competição que se tentava criar na época. Há poucos dias, o 28o leilão de energia realizado no país, exclusivamente para usinas eólicas, contou com um aparato de segurança bem mais modesto. Cada empresa se reuniu onde bem entendeu e participou da negociação pela internet. A redução da segurança, no entanto, não diminuiu o nível de competição - nem de estresse - do evento. "A maior prova de que o leilão cumpriu seu papel foi o número de participantes e o preço final da energia", afirma Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, centro de estudos de energia elétrica. Inicialmente, 341 projetos de usinas foram inscritos, embora o número de participantes que efetivamente entraram na negociação seja mantido em sigilo. Sabe-se que 71 usinas saíram vencedoras. Essas usinas ainda não existem -- por enquanto são apenas projetos que terão de ser instalados até 2012 nos estados da Bahia, Rio Grande do Norte, Ceará, Rio Grande do Sul e Sergipe para então produzir energia a partir do vento. No quesito preço, o leilão registrou o maior deságio médio de todos os realizados até agora, 21,5%. Em vez dos 189 reais por megawatt-hora médio estabelecidos como teto pelo Ministério de Minas e Energia, os contratos foram fechados por 148 reais, em média. VEJA QUADRO:
Competição TotalOs preços, que surpreenderam todo o setor, foram alcançados ao final de quase 8 horas de negociações. A CCEE funciona como uma bolsa que reúne produtores de energia (as geradoras) e consumidores (as distribuidoras, que vendem energia ao cidadão comum e às empresas). Na verdade, as distribuidoras não participam diretamente do leilão -- elas informam previamente ao governo quanto de energia precisarão no futuro, e a CCEE usa essa informação para executar a comercialização. Na hora do leilão, a CCEE busca baixar o preço até o limite em que a oferta cubra a demanda. Na prática, um sistema informatizado comanda o leilão e desconta, a cada lance, um percentual fixo do preço definido como máximo. A cada redução, os participantes são indagados pelo sistema se aceitam ou não vender a energia ofertada naquele valor. Assim que todos respondem, o sistema elimina os que declinaram e verifica se a quantidade de energia ofertada atende ao volume que se pretende comprar. Enquanto a oferta permanece maior que demanda, o sistema continua baixando o preço. As reduções continuam até o ponto em que a oferta seja menor que a demanda. Aí, o jogo é invertido e os participantes chegam ao ápice do estresse. O sistema volta ao preço da rodada anterior e avisa aos participantes que eles têm 5 minutos para dar o último lance, o que significa oferecer o preço mínimo a que se propõem vender cada megawatt. Esse momento ocorreu após 75 exaustivas rodadas de descontos, que derrubaram o preço do megawatt-hora médio dos 189 reais iniciais para 155,15. "Foi uma tensão brutal, porque ninguém quer dar um preço muito baixo, mas também não quer ficar de fora", afirma Lucas Pescarmona, diretor do grupo argentino Impsa, que atua há 30 anos no Brasil.
Ficar de fora, no caso da Impsa, significaria deixar de ganhar muito dinheiro, cerca de 100 milhões de reais anuais durante 20 anos. Para começar a receber esse dinheiro, a Impsa terá de construir até 2012 as oito usinas eólicas com as quais concorreu no leilão. Juntas, elas terão 211 megawatts de potência instalada. O investimento necessário para a construção dos parques, todos no Nordeste, será de 1,2 bilhão de reais. Outras empresas vencedoras foram Eletrosul, CPFL e Renova Energia, controlada pelo Fundo InfraBrasil, administrado pelo Santander. O trabalho para participar de um leilão desse tipo começa muito antes da divulgação do edital. Na Impsa, começou há três anos e já custou 25 milhões de reais. Nesse período, a empresa alugou diferentes áreas no Ceará e no Rio Grande do Norte, onde instalou torres para medir os ventos e contratou consultorias especializadas nesse tipo de medição e também em licenciamento ambiental -- uma das regras do leilão é que só podem concorrer projetos já previamente licenciados pelos governos estaduais. Todo esse trabalho é o que permite definir o limite mínimo de preço aceitável durante a negociação. Os estudos de capacidade de produção e a engenharia financeira têm de ser rigorosos, pois qualquer erro pode implicar prejuízo. "De um lado, o leilão oferece contratos de longo prazo, o que é ótimo para os empreendedores. De outro, estabelece multas pesadas a quem não cumprir o acordo", afirma Wilson Ferreira Júnior, presidente da CPFL. Para participar do leilão, todas as competidoras tiveram de depositar uma garantia em dinheiro -- 100 milhões de reais, no caso da CPFL. "Esse tipo de regra impõe disciplina ao setor e evita a entrada de aventureiros", diz Ferreira. O sistema de comercialização de energia por meio de leilões já é usado há décadas em países desenvolvidos. O sistema inglês, do início dos anos 80, é reconhecido por muitos especialistas como um dos mais avançados do mundo. Na Inglaterra, o governo não precisa interferir nos leilões -- as próprias empresas e os consumidores entram em acordo. "Por aqui, os leilões ainda são recentes, mas têm demonstrado uma evolução significativa, particularmente pelo número de investidores atraídos", afirma Virgínia Parente, professora do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo. De acordo com Mario Veiga, consultor da PSR, uma consultoria especializada no setor, o mais importante é que o governo atua na organização do processo, mas não compra nem vende nada. "O papel do governo é coletar a demanda das distribuidoras, programar os leilões e manter a demanda total em segredo até o final. O fato de ninguém saber quanto será comprado aumenta a competição entre as geradoras", diz Veiga. O modelo de comercialização brasileiro já despertou interesse em vários países. A CCEE e a Aneel já foram visitadas por diversas delegações estrangeiras de países como Colômbia, Costa Rica, Coreia do Sul, China e Tailândia. A Paradigma, empresa catarinense que desenvolveu o sistema de TI dos leilões, foi responsável pela operação do primeiro leilão eletrônico da Colômbia, meses atrás. Atualmente, está desenvolvendo o sistema para a maior empresa portuguesa de energia, a Galp, que comercializará eletricidade e petróleo nas bolsas europeias. "O sucesso dos leilões por aqui abriu as portas para a internacionalização da nossa empresa", afirma Gerson Schmitt, presidente do conselho de administração da Paradigma. O fato é que os leilões brasileiros são tidos como um sucesso por quem mais importa -- os próprios investidores, que vão produzir a energia de que o país necessita. "Um dos pontos altos desse modelo de leilão é a transparência", afirma Enrique Pescarmona, presidente do grupo Impsa, que veio ao Brasil para acompanhar o leilão. "Não enxergamos maneiras de haver acordos por baixo da mesa, principalmente quando existem centenas de participantes na disputa." Em meio a blecautes por problemas em redes de transmissão, como o ocorrido em novembro, e ainda com a memória do desastroso racionamento de energia de 2001 e a ameaça que rondou 2008, não deixa de ser um alento que empresários e especialistas em energia afirmem que o país vem evoluindo no setor elétrico. Que continue assim.